sexta-feira, 28 de março de 2008

Um nome espiritual

Meu bom amigo Luís de Araújo, editor do jornal "O Aprendiz", de Ribeirão Preto, me pediu para escrever algumas palavras sobre o assunto nome espiritual. Provavelmente está preparando alguma matéria para o seu jornal - que diga-se de passagem, tem levado muita inspiração para os buscadores daquela região. Decidi, então, compartilhar com vocês, os leitores que não são de Ribeirão, a reflexão que mandei para ele.

Aqui vai:

Um nome é uma palavra usada para chamamento que identifica um indivíduo em meio a uma coletividade. O nome sempre foi considerado um elemento importante da vida de uma pessoa, e a escolha do nome é uma tarefa árdua para os pais. Em geral eles acabam procurando uma solução que seja simples e justificável, como uma homenagem a um parente, ou a um personagem famoso ou bem sucedido, ou ainda a um santo, um anjo ou outra figura mítica ou religiosa.

No entanto nunca se sabe, ao escolher o nome, se aquela criança, no futuro, ficará satisfeita com o nome que recebeu. O nome pode evocar referências pouco condizentes com sua personalidade ou aparência - ou simplesmente pode parecer, de alguma maneira, inexpressivo como referência àquela determinada pessoa - ou seja, ela se apresenta e as pessoas respondem "você não tem cara de quem tem esse nome". Isso decorre do fato do nome se vincular à personalidade e à aparência das pessoas, e não necessariamente evocar a sua natureza verdadeira, que poderíamos chamar de "identidade espiritual".

A idéia de se encontrar um nome capaz de evocar a verdadeira pessoa que se oculta por trás da personalidade transitória é bastante antiga. Esse seria o nome perfeito, sem qualquer sombra de dúvida. Em diversas civilizações do presente e do passado existiu essa intenção de encontrar alguma maneira de atribuir um nome perfeito para cada ser humano: o nome espiritual. E a solução encontrada quase sempre implicou na atribuição de um nome mundano que a criança carregaria até a adolescência, quando receberia um novo nome ao passar por um rito de iniciação na vida adulta. Dessa forma, seria possível identificar pelos traços já visíveis de seu temperamento qual seria o nome mais adequado para designar o espírito oculto sob a aparência daquele determinado indivíduo.

Na Índia, o nome espiritual é escolhido pelo "guru", o preceptor espiritual da família, e esse nome é mantido em segredo pelo adolescente ou adulto que o recebe. Acredita-se que tem o valor e a força de um "mantra", capaz de evocar as melhores qualidades da pessoa, quando pronunciado com boas intenções. Daí a opção por mantê-lo em segredo, longe dos lábios invejosos de possíveis adversários. Essa prática de atribuição de um nome espiritual iniciático foi adotada também por organizações espiritualistas de todo o mundo, tentando seguir o rastro de nossos sábios antepassados.

A sociedade ocidental contemporânea, no entanto, de uma forma geral não oferece mais esse mecanismo de um "batismo " espiritual, e por essa razão, o máximo que conseguimos é um apelido horroroso, que apenas faz justiça à opinião de quem só tem olhos para os nossos defeitos.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Deixe cair a ficha...

Poucas coisas são mais gratificantes do que um belo "insight". Aqueles momentos em que as idéias, que antes estavam confusas, num repente se encaixam perfeitamente, como num passe de mágica, e nos dão a felicidade da perfeita compreensão de seu sentido. É algo tão delicioso que queremos compartilhar com todo mundo.

Mas é justamente aí que surge o problema. O "insight" é uma experiência absolutamente pessoal e dificilmente surge de um modo que possa ser transferido ou compartilhado com outra pessoa. Esse é o seu charme e a sua maldição - ele é o resultado de uma atitude de busca ativa. Não pode ser recebido passivamente de alguém que desfrutou dele anteriormente.

Mesmo assim, ficamos ansiosos por compartilhar.

A condição do portador do "insight" é a mesma de uma criança diante do processo do aprendizado - e não apenas aquele da escola formal, mas também, e principalmente, o aprendizado que a vida oferece aos que não têm vergonha de admitir que ainda não sabem. A criança diz - "não sei" e fica olhando para a gente com aqueles olhinhos que pedem para ser surpreendidos com um belo truque de mágica. Ela não quer adivinhar e dar uma resposta esperta - coisa de adulto - mas se diverte com não saber e ter a chance de uma nova descoberta. A vida é muito gratificante na infância, enquanto ainda não temos o desejo de parecer melhores que os outros e entrar na competição que transforma nossos antigos amigos em adversários que devemos temer. Para que eu ia querer ser melhor que os outros, e não ter mais alguém com quem dividir a minha curiosidade e talvez compartilhar o "insight"?

Só temos "insights" quando estamos humildes e reconhecemos que alguém mais pode nos oferecer a pecinha que falta para concluir nosso quebra-cabeças. Quando ainda somos capazes de extrair alegria por juntar idéias ou por ler uma poesia. Porque a poesia, quando é poesia de verdade, é a mais incrível fonte de "insights".

Os hindus chamam os seu maiores sábios - aqueles que trouxeram a revelação dos Vedas, de "poetas". De poesia é feito o próprio Universo, onde os deuses são apenas mantras - e por isso mesmo são tão poderosos...

Se você quer encontrar a felicidade digna de um grande yogui, o primeiro passo é olhar para sua própria ignorância como uma oportunidade de aprendizado. E olhar para o aprendizado como uma oportunidade de encontrar a alegria do "insight". E olhar para o "insight" como um retorno à inocência da infância, como se você houvesse bebido do néctar da imortalidade.

Aquele que já sentiu o prazer de um único "insight" sempre estará atento para não perder o próximo. Mãos à obra, portanto. Pergunte alguma coisa para alguém, com um desejo verdadeiro de elucidar alguma dúvida. Ou, se preferir, abra um livro de poesias. Faça uma meditação ou cante um mantra - e fique atento ao que se passa dentro de seu coração.

E vamos deixar, mais uma vez, cair a ficha...

domingo, 9 de março de 2008

Tradutor, um traidor...

Parece incrível como as traduções de textos de culturas orientais são difíceis para nós, ocidentais. E isso é particularmente verdadeiro para a literatura sânscrita, onde a maior causa de distorções é a autoridade dos especialistas.

É incrível a quantidade de erros de tradução que encontro diariamente quando leio as traduções de autoridades acadêmicas. O Rig Veda de Griffith é um exemplo típico, onde erros grosseiros impedem uma leitura fluente de qualquer dos hinos - fazendo parecer que os antigos védicos tinham um modo muito esquisito de dizer as coisas. Na verdade parece que alguns tradutores, quando não têm certeza sobre o que está registrado no texto original, pulam sem aviso aquele trecho duvidoso ou simplesmente inventam alguma coisa para escrever ali - só para não deixar passar em branco...

Outra marca registrada de alguns "tradutores clássicos" é o fato de utilizarem versões arcaicas de suas próprias línguas - o estilo "bíblico" - como se isso fosse dar mais credibilidade ou autenticidade à tradução de textos antigos. Isso é um hábito muito frequente nas traduções para o Inglês. O que eles conseguem é apenas tornar ainda mais difícil a leitura, o que possivelmente vai disfarçar um pouco as suas falhas de tradução.

O grande problema com essas falhas de tradução é que elas se propagam por diversos outros textos que as tomam por referência, e que acabam por dar a elas uma credibilidade que não merecem.

Certa ocasião, na Universidade de São Paulo, quando eu ainda estudava Sânscrito, o professor Mario Ferreira contou que fazia um estudo sobre os nomes de posturas do Hatha Yoga quando se deparou com um nome que ainda não conhecia - a "postura da lagosta". Ao procurar pelo nome original sânscrito ele encontrou a shalabhAsanam, ou seja, a "postura do gafanhoto". A tradução estava errada. Para seu espanto, porém, muitos outros livros registravam o mesmo erro, alguns inclusive trazendo o nome original sânscrito estampado junto à tradução equivocada - o que, aliás, servia de prova e atestado da ignorância do autor. Quase trinta publicações, na época, reproduziam o erro de tradução. Mas como isso teria ocorrido? Uma consulta às bibliografias dessas publicações logo revelou o DNA e a árvore genealógica do problema. Um livro que aparecia na fonte, como referência para os demais, era uma tradução de um original em Inglês - no qual o nome da postura fora traduzido corretamente como "gafanhoto". O erro, desta vez, havia sido da tradução a partir do Inglês, onde gafanhoto é "locust", e o tradutor, num ato falho, traduziu "locust" por "lagosta" (em Inglês, "lobster").

Ainda que se entenda o fato de um tradutor de Inglês não conhecer o Sânscrito, não podemos perdoar a falta de revisão de seu erro na tradução do Inglês. E menos ainda a cara-de-pau de autores locais que posaram de entendidos do Sânscrito, colocando em seus livros o nome original da postura, e copiando o erro grosseiro de tradução produzido pelo descuidado tradutor do Inglês. Haja paciência...

Esse caso contado pelo professor Mario Ferreira aos seus alunos (entre os quais, eu), por volta de 1980, me deixou uma impressão muito forte acerca da responsabilidade de quem trabalha com outras línguas. Reforçou também a minha convicção de que quem quer conhecer a riquíssima diversidade das Culturas da Índia precisa considerar a possibilidade de fazê-lo nas suas línguas originais.

É aqui que minha convicção sobre o a importância de se disseminar o acesso ao Sânscrito se fortalece. O mercado oferece excelentes tradutores para um grande número de línguas que dão corpo a culturas fascinantes, mas o Sânscrito está mal servido, nesse mercado. A grande autoridade "moral" de alguns tradutores não melhora em nada a pobreza de seu trabalho com essa língua fantástica.

Posso garantir a você que há muito, mas muito mesmo, a ser aprendido por nós dos "insights" que nossos antepassados indianos tiveram há dois, três, quatro mil anos ou mais. Mas minha recomendação, no caso do Sânscrito, será sempre a de estudar a língua e ler o texto diretamente no original. Garanto a você que o resultado paga com folga todo o esforço investido nesse aprendizado.