domingo, 9 de março de 2008

Tradutor, um traidor...

Parece incrível como as traduções de textos de culturas orientais são difíceis para nós, ocidentais. E isso é particularmente verdadeiro para a literatura sânscrita, onde a maior causa de distorções é a autoridade dos especialistas.

É incrível a quantidade de erros de tradução que encontro diariamente quando leio as traduções de autoridades acadêmicas. O Rig Veda de Griffith é um exemplo típico, onde erros grosseiros impedem uma leitura fluente de qualquer dos hinos - fazendo parecer que os antigos védicos tinham um modo muito esquisito de dizer as coisas. Na verdade parece que alguns tradutores, quando não têm certeza sobre o que está registrado no texto original, pulam sem aviso aquele trecho duvidoso ou simplesmente inventam alguma coisa para escrever ali - só para não deixar passar em branco...

Outra marca registrada de alguns "tradutores clássicos" é o fato de utilizarem versões arcaicas de suas próprias línguas - o estilo "bíblico" - como se isso fosse dar mais credibilidade ou autenticidade à tradução de textos antigos. Isso é um hábito muito frequente nas traduções para o Inglês. O que eles conseguem é apenas tornar ainda mais difícil a leitura, o que possivelmente vai disfarçar um pouco as suas falhas de tradução.

O grande problema com essas falhas de tradução é que elas se propagam por diversos outros textos que as tomam por referência, e que acabam por dar a elas uma credibilidade que não merecem.

Certa ocasião, na Universidade de São Paulo, quando eu ainda estudava Sânscrito, o professor Mario Ferreira contou que fazia um estudo sobre os nomes de posturas do Hatha Yoga quando se deparou com um nome que ainda não conhecia - a "postura da lagosta". Ao procurar pelo nome original sânscrito ele encontrou a shalabhAsanam, ou seja, a "postura do gafanhoto". A tradução estava errada. Para seu espanto, porém, muitos outros livros registravam o mesmo erro, alguns inclusive trazendo o nome original sânscrito estampado junto à tradução equivocada - o que, aliás, servia de prova e atestado da ignorância do autor. Quase trinta publicações, na época, reproduziam o erro de tradução. Mas como isso teria ocorrido? Uma consulta às bibliografias dessas publicações logo revelou o DNA e a árvore genealógica do problema. Um livro que aparecia na fonte, como referência para os demais, era uma tradução de um original em Inglês - no qual o nome da postura fora traduzido corretamente como "gafanhoto". O erro, desta vez, havia sido da tradução a partir do Inglês, onde gafanhoto é "locust", e o tradutor, num ato falho, traduziu "locust" por "lagosta" (em Inglês, "lobster").

Ainda que se entenda o fato de um tradutor de Inglês não conhecer o Sânscrito, não podemos perdoar a falta de revisão de seu erro na tradução do Inglês. E menos ainda a cara-de-pau de autores locais que posaram de entendidos do Sânscrito, colocando em seus livros o nome original da postura, e copiando o erro grosseiro de tradução produzido pelo descuidado tradutor do Inglês. Haja paciência...

Esse caso contado pelo professor Mario Ferreira aos seus alunos (entre os quais, eu), por volta de 1980, me deixou uma impressão muito forte acerca da responsabilidade de quem trabalha com outras línguas. Reforçou também a minha convicção de que quem quer conhecer a riquíssima diversidade das Culturas da Índia precisa considerar a possibilidade de fazê-lo nas suas línguas originais.

É aqui que minha convicção sobre o a importância de se disseminar o acesso ao Sânscrito se fortalece. O mercado oferece excelentes tradutores para um grande número de línguas que dão corpo a culturas fascinantes, mas o Sânscrito está mal servido, nesse mercado. A grande autoridade "moral" de alguns tradutores não melhora em nada a pobreza de seu trabalho com essa língua fantástica.

Posso garantir a você que há muito, mas muito mesmo, a ser aprendido por nós dos "insights" que nossos antepassados indianos tiveram há dois, três, quatro mil anos ou mais. Mas minha recomendação, no caso do Sânscrito, será sempre a de estudar a língua e ler o texto diretamente no original. Garanto a você que o resultado paga com folga todo o esforço investido nesse aprendizado.

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